Broça aos montes /
Instalação / Installation
no espaço da antiga loja da "Papel & Companhia"
Centro comercial das Antas
Dimensões variáveis / Variable dimensions
2004
Texto / Text
Bernardo Pessoa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa
teixeira barbosa

«Broça aos montes» ou o lugar do espectador involuntário.

As galerias e os centros comerciais são hoje o círculo fechado ( e talvez vicioso) daquilo que Benjamin já havia identificado no séc.XIX como sendo o lugar da mercadoria, da moda e do fetichismo: as Passages de Paris. É certo que, agora, no labirinto estreito e claustrofóbico da «vida moderna», o centro comercial assume o lugar laico de uma sacralização do objecto e do consumo. Ele é o lugar de uma regulação dos comportamentos e das atitudes, o recreio de uma sociedade crente na promessa social do bem estar e, por isso mesmo, abandonada à sua sorte, à indiferença da sua condição consumista. Nestas «catedrais» contemporâneas a necessidade de evasão consuma-se no fácil e peremptório reconhecimento do desejo individual bem como na redenção imediata de uma imagem comum.

Tal como nas Passages de Paris, as montras ritualizam um desejo dos objectos, cuja encenação se rebate nos corpos e nos gestos, há muito desapropriados, do «homem moderno». A montra é por isso o relicário, a superfície transparente e reflectora, a caixa onde se dispõem os manequins e os simulacros desses mesmos gestos perdidos que a erotomania mercantil e as suas imagens se encarregam continuamente de ressuscitar. A montra é esta fronteira por onde se inscreve a mútua intimidade do objecto e do consumidor, o lugar onde um e outro se revêm e se reconhecem enquanto formas intercambiáveis e negociáveis. Ela é o espaço fantasmagórico, brilhante, quase invisível, onde se espelha e perfila o cortejo infindável dos poderosos mas também dos excluídos, o mecanismo de uma produção de deambulações que constitui a visão trágica e esquizofrénica da cultura, visão em cujas imagens a economia e a força do dinheiro souberam depositar a confiança.

No Centro Comercial das Antas, na deriva das lojas, dos corredores, das mercadorias e das imagens, Teixeira Barbosa recria, em reverso, a memória de um espaço comercial: uma papelaria que finda: agora inexistente.

Do gesto de recriação que o artista propõe ressalta a persistência de uma imagem dialéctica: uma imagem do vazio e do preenchimento, uma imagem de preparada devastação, de falsa desordem e de evidente estimulação.

A «broça aos montes» declara a fórmula do alimento e da imundície, a ceva dos porcos e o calão utilizado para dizer o dinheiro. «Broça aos montes» exprime bem a forma dissipada e ao mesmo tempo abundante dos restos, dos vestígios, das sobras, ou seja, o cálculo do lixo que o espaço, uma vez desocupado, torna patente. Por isso a imagem do dinheiro ganha o destaque do cartaz, do poster esquecido na parede, bem como a singularidade e a repetição daquilo que se lê ONE In God we trust, um resto de uma nota bancária, um resto interpretado como uma novidade, como logotipo reconhecível à escala mundial. Diante deste cenário de dissipação a ironia irrompe como uma paródia orientando todo o jogo performativo da «ocupação».

Esta não é, no entanto, uma ocupação selvagem nem um gesto iconoclasta de Teixeira Barbosa, mas apenas uma justa medida de intervenção, capaz de intensificar, mesmo que por poucos instantes, o olhar do cliente, do consumidor, convertendo-o voluntariamente ao espectáculo do qual ele é, sem o saber, há muito, o implícito espectador.

Bernardo Pessoa
Maio 2004