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A voluminosidade da matéria.

Recomeça de novo. E qual é o motivo? O que é que as imagens fotográficas de Teixeira Barbosa nos propõem de novo? E o que é que nelas recomeça? Nestas fotografias, parece que o escultor, que outrora abraçava a ductilidade das formas, faz agora passar, por entre os dedos, a voluminosidade das matérias. Esta é uma primeira novidade. E, uma forte contradição de princípio.

A voluminosidade combina, precisamente, a qualidade do volume e da luminosidade, constituindo-se o atributo qualitativo de uma experiência sensorial que as confunde e transforma. Há algo de luminoso na experiência dos volumes que afecta e altera a percepção trivial da forma escultórica. A luz é talhada pelo volume, pela intensidade do volume, pela flutuação sensorial, tangível, onde se inscrevem as texturas, as cores e a forte sugestão do olhar. A luminosidade não consiste em distribuir o brilho ou a aparência da cor, a carnalidade da escultura, mas sim em construir a experiência diáfana da aura, da atmosfera, que anima o seu espaço e recepção.

A escultura nunca foi um volume recortado pelo simples jogo formal das sombras. Na realidade, a escultura projecta-as, confundindo-as no contacto com as superfícies, com a translucidez e a cor das matérias. Em certo sentido, ela capta o movimento dos seus próprios efeitos, tornando-se sólida e insólita como as suas próprias dobras e sombras.

A escultura recomeça de novo quando nela se joga a memória das suas imagens e o reactivar das suas emoções. Na escultura, as superfícies podem ser ínfimos volumes e os volumes pouco mais do que superfícies. Os materiais opacos podem brilhar e reflectir enquanto os materiais transparentes reduplicam e desdobram o espaço. A zona de contacto torna-se, deste modo, extensiva e intensiva. Se a inferência visual privilegia o táctil, a experiência espacial torna-se um limiar de distâncias e de afectos do olhar.

A escultura pode, então, tornar-se hipótese fotográfica, recurso pausado e demorado do instantâneo fotográfico, em cujas séries se reconstitui o movimento do olhar e a projecção coreográfica do espaço. Esta é outra novidade, decorrente da primeira, mas essencial, na medida em que a fotografia supõe o jogo das contradições e dos constrangimentos da matéria escultórica - a aparência dos volumes e da luminosidade - que institui, para além das determinações do espaço, o paradoxo da vida suspensa na passagem dos instantes. Relação, portanto, entre forma e tempo, entre intensidade e duração.

Na escultura, a matéria, o volume, o peso impulsionam uma decisão técnica que, fazendo jus da clássica arte de subtrair - arte di levare -, prefere agora escolher o contacto e a mobilidade dos planos bem como a subtileza da cor que neles se constitui. Neste caso, se a fotografia contraria a percepção do espaço tradicional da escultura ela restitui ao olhar a capacidade de o imaginar na plenitude da sua força escultórica. E de que força se trata? O molde e a modelação são as atitudes, as técnicas, que mais convêm à formação do objecto escultórico. No oposto dos procedimentos ideais do desvelamento, por via da subtracção, o molde e a modelação apontam para processos arcaicos de produção da forma por contacto. A lógica construtiva da imagem-contacto implica assim um processo de interposição dos próprios meios expressivos e materiais. Implica uma dinâmica indiciária da forma e das forças que a constituem.

O que se joga na escultura-contacto não é, portanto, um ideal da forma, mas o movimento e a contraposição viva de uma presença, a qual inclui a incorporação imediata e expressiva da ausência, a combinação real de polaridades espaciais e temporais, de aspectos do fazer e do agir. Neste sentido, o contacto do médium fotográfico materializa a expressividade destas polaridades, concretizada na sucessão serial dos seus processos de modelação e de modulação luminosa.

Quais são as consequências da escultura-contacto para a fotografia? Trata-se de interpretar neste tipo de imagens um fenómeno de intensificação de formas e de tempos, de integração de ritmos expressivos e de convocações da memória. O encontro e o acaso fortuito com as coisas, com a aparência caótica do real, com os lugares antagónicos - o atelier do pintor, tema central destas fotografias – aspiram, de facto, à voluminosidade da imagem-contacto. O médium fotográfico é apenas o subterfúgio técnico capaz de captar a relação existente entre a aparência do volume e a presença da luz. Por isso, não é a virtualidade ou o virtuosismo aquilo que nestas fotografias se impõe, mas sim uma dialéctica da aparência e da presença, da forma e do movimento, do objecto e do espaço. Uma dialéctica que se impregna das relações e das distinções entre escultura e fotografia, mas também entre escultura e pintura, e ainda, entre pintura e fotografia.

Na verdade, se a escultura transporta consigo a gravidade e a solenidade do monumento, a fotografia, ao invés, procura captar uma face, um aspecto da sua contida presença e memória. Por isso, o volume e a luminosidade coincidem numa coisa: a vida, as formas, o plano da sensação e da memória irrompem a cada instante, imagem a imagem, atribuindo às próprias coisas a mobilidade do olhar que só a luz permite captar e pensar.

Vítor da Silva

Porto, 22 de Fevereiro de 2007

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