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Inauguração / Opening
05 - 04 - 2003
Extéril
18.30 h Sábado / 6.30 pm Saturday
VÍTOR SILVA CRAVO
"Cabeças, troncos e nervos"
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Nervuras da paisagem e do tempo
Vitor Cravo, "Cabeças, troncos e nervos"
Galeria Extéril, Abril de 2003.
Se experimentássemos descrever a ocupação que Vítor Cravo realiza no espaço da Galeria Extéril atrever-nos-íamos certamente a compreender a «lógica» antropomórfica que o artista procurou tornar evidente com o título da exposição.
"Cabeças, troncos e nervos" mostra três séries de desenhos a grafite sobre papel (papel opaco e papel «vegetal») as quais ocupam em cada sequência de três desenhos, três das quatros paredes do espaço de exposição. O habitáculo da Galeria Extéril exibe ainda, pousados sobre o chão e encostados às paredes, três vidros gravados, os quais enquadram pequenos cepos de madeira pintados a tinta da china.
As formas de cada sequência de desenhos mostram a presença equívoca de «cabeças» de «troncos» e de «nervos», ou, talvez melhor, de nervuras, de dobras e de rugas. Para além da expressão das "cabeças", como se de chocantes e violentas projecções de sombras ou de fantasmas se tratasse, os desenhos lembram formas «vegetais» onde se vislumbra a relação directa com os "troncos", os quais colocados no chão permanecem como restos «apagados» e «carbonizados», apesar de protegidos (serão relicários? ) pela superfície, também ela gravada e inscrita, do vidro.
A composição das séries joga-se nesta dupla relação entre paredes e chão, entre ascensão e queda, entre manchas, texturas e linhas. A opacidade dá lugar à transparência, o reflexo e o brilho dão lugar à absorção e ao traçado «ofuscado» e quase «imitado» das linhas. A aparente clareza dos «nervos» contradiz a espessa negrura das "cabeças" e dos "troncos" pintados. Há polaridade e contraposição entre a matéria dos desenhos e a matéria mais «dura», mas igualmente frágil, dos vidros e dos elementos vegetais «carbonizados». Há no geral uma impressão de resíduo, de resto, de fragmentos arranjados e combinados. Mas também uma ilusão de «brancura», de clareza, demonstrada através da simetria e do vazio do espaço.
Se a presença negra dos "troncos" parecem sugerir o «motivo» real das séries de desenhos, as "cabeças", também a negro, parecem testemunhar a implosão material da grafite, e, neste sentido, anunciar uma concentração física e expressiva daquilo que na forma dos "nervos" e das sobreposições se espalha nas outras séries. A dimensão expressiva da montagem exibe na realidade planos de um «corpo» e de uma matéria: são retratos e «contactos», tensões e sensações, gestos e ressonâncias, ritmos e distâncias do negro, do «nada».
A forma dinâmica construída em redor dos desenhos cria um corpo e um estilo do corpo: uma ideia do corpo. Uma ideia do corpo do desenho.
Corpo de nervos e nervuras do corpo, corpo que «sujeitado» pela analogia formal do resíduo, do resto, encontra a sua possibilidade e a sua capacidade de relação e de contacto.
É na opacidade claramente trabalhada dos "troncos" que o conjunto dos desenhos encontra o apoio e o desafio do corpo. Os desenhos registam e «imitam» os traços escondidos, «apagados» e ausentes do fragmento, do gesto. Os desenhos duplicam e «imitam» esses traçados, constituindo uma experiência quase neutra de registo e de levantamento.
São traços aparentes, «falsos», cuja expressividade tende a imitar-se a si mesma, e os quais sugerem uma expressividade inexpressiva, uma impossibilidade em decidir, um olhar siderado sobre o «negativo», escavado e «neutralizado» pelo tempo.
Os desenhos expostos vão no sentido de refazer esta inevitável fragmentação e erosão do tempo. São desenhos da experiência do corpo, desenhos que envolvem e a abraçam a «ausência», a ruína e a transformação do tempo. São desenhos de "cabeças" como mortalhas, como sudários de uma transformação dos corpos, dos motivos, pelo qual o estilo, a expressão e a força, se liga aos corpos, à natureza «salvada» dos corpos.
Os "troncos" são pedaços, talvez restos «salvados», restos de percursos e de passeios do desenhador, «motivos» achados e seleccionados no contacto com a natureza: objectos de uma experiência que confunde o mais próximo e o mais longínquo - o que se vê e o que se sente -, objectos de um contacto com o olhar quando a paisagem se desdobra na sensação do horizonte ou da onda, do vento ou do sussurrar do arbusto. São estes "troncos" motivos de uma cinestesia que implica a natureza da observação e a perspectiva de uma desimplicação, de um «saber» retirar-se, de um «saber» ausentar-se, para registar essas linhas por onde se entreabre a experiência empática, expressiva e sensível da paisagem.
Os desenhos são aqui o lugar e o limiar de uma experiência, uma abertura onde se combina a deposição do tempo, com as linhas que atravessam e configuram o espaço. Os "nervos" correspondem à lentidão e à urgência com que se constrói simultaneamente a confiança e a incerteza dos traços: a marca do tempo.
Estamos diante da montagem destes desenhos como que suspensos pela curiosidade e pela incompreensão. O que é que faz com que esta «desordem» de traços e de registos lineares abstractos suscite uma orientação e um sentido do real? Porque é que aquilo que vemos supõe a ideia da paisagem e o percurso do corpo? Como é que os desenhos ganham a figuralidade da paisagem?
Talvez seja necessário completar o plano da memória com o qual estes desenhos e a sua respectiva montagem estabelece a sua «motivação» e a sua suscitação mais intensa. Em primeiro lugar a reminiscência da paisagem, o sabor da quietude ou da tarde, a pausa, o intervalo. Depois o reencontro com o desperdício, com o resto, com aquilo que acolhe a experiência e a história do tempo que se esvai: "cabeças", "troncos" e "nervos", traços e texturas de fragmentos, de partes, tal como foram esquecidos.
Esta poderá ser uma ocupação da paisagem pela memória dos seus traços: uma pequena casa abandonada sem portas nem janelas.
Bernardo Pessoa.
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