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Este desenho feito com marcador sobre um saco de plástico faz parte de uma série, cujo nome é ‘Coisa de pobre’.
Esse conjunto de trabalhos pretende, num primeiro momento, remeter para a manutenção da ordem social, por via do consumidor disciplinado e cooperante, cuja contribuição esclarecida para “salvar o ambiente” passa agora pela recusa do plástico, especialmente na sua encarnação dita descartável. Só os pobres e os velhos é que não aprendem, e insistem nas sacas cansadas do supermercado ou da venda da esquina.
A peça que aqui apresento, isolada, desvia-se ligeiramente para um outro lado, mas continua a interrogação sobre culpabilização e disciplina.
O ênfase agora é no próprio suporte, na infraestrutura.
Ou seja, trabalhar e expor o desenho enquanto a ferramenta de aprendizagem em que este rapida e “naturalmente” se transforma, com todas as suas condicionantes e formatações, que modelam e tornam certeiro e (artisticamente) útil aquilo que é agreste e disforme - logo, dissonante para com a tal ordem social que vai vigorando, e que todos vamos aprendendo e reproduzindo.
Porém, importa sublinhar que não se trata aqui do uso caricatural de um desenho “indisciplinado”, tipo “estilo punk”, carregado de tiques e signos ditos provocatórios capazes de evocar, a um olhar mais atento, não a contestação apregoada mas uma outra formatação tão típica dos nossos dias, o “desaprender” (um novo academismo).
O que me interessa explorar são as zonas complicadas, em que as coisas aparecem misturadas, não as respostas redondas e prontas. Por isso mesmo, este desenho é também uma escultura, em plástico fininho e sem plinto. As suas marca repetitivas, básicas, são uma parte mas não o todo do desenho-escultura, que a AI insiste em confundir com escrita (como não?!). O objecto é ainda transparente; por isso, não precisa que andemos à sua volta para o ver, e nesse sentido confunde com alguma tristeza o triunfo da bidimensionalidade nos nossos dias, a partir do tridimensional. Finalmente, e sem prejuízo de ir apontando outras leituras, esta conversa toda inclui os limites de, a partir de tudo isto, produzir algo que seja um pouco mais, só um bocadinho mais, do que patético.
Nuno Ramalho, Novembro 2023
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Nuno Ramalho licenciou-se em Escultura pela FBAUP, possui um mestrado em New Genres pelo San Francisco Art Institute, e iniciou o seu doutoramento em arte no Goldsmiths, concluindo o projecto na FBAUP. Expõe a sua obra desde 1999. Curador de vários projetos expositivos, em 2016 fundou o programa de vídeo arte ‘Playlist’. A sua obra está presente em instituições como CAV, Fundação de Serralves, CACEP ou CAC/CMP, bem como em diversas coleções particulares. Artista residente na Triangle France, foi um dos nomeados para o prémio EDP Novos Artistas em 2004. Foi bolseiro Fulbright e da Fundação Gulbenkian. É professor convidado na ESAP e representado pela Galeria Graça Brandão, em Lisboa. O seu trabalho, que envolve configurações variadas, procura fundamentalmente reflectir sobre o que é que o trabalho artístico, os diversos agentes e lugares que lhe estão associados, e as formas de valor envolvidas em tudo isto, nos podem dizer sobre o mundo actual. |