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Entre o artista, o patronato e a obra
Rui Pedro Fonseca
Resumo:
A distribuição da produção e o consumo de uma obra de arte estão dependentes de um circuito cuja lógica implica o investimento de dinheiro e a necessidade de obtenção de lucros dentro de um mercado concorrencial que requer a inovação, diversificação e originalidade, por vezes, alguma egolatria e subjectivismo, como armas numa competição entre artistas, agentes e instituições que possuem um sentimento de luta pela existência material, pelo sucesso, pela influência e pelo poder. Este artigo propõe uma reflexão sobre algumas questões suscitadas pelos modos de produção e de difusão da obra de arte, procurando-a compreender à luz das exigências da rentabilidade a que está sujeita e das relações criadas entre o artista e o patronato.
A luta do artista para conseguir materializar a sua ideia implica, por vezes, o investimento de montantes tão elevados que um sistema de auto-financiamento que lhe permita produzir pode não ser suficiente para adquirir materiais demasiado custosos, equipamentos, colaboradores e/ou espaços. Uns vão conseguindo patrocínios, outros vão vendendo as suas peças, outros adquirem empregos dentro ou fora do campo da arte, outros formam associações, grupos, etc., para, na maior parte dos casos, obterem a visibilidade imprescindível.
Independentemente das estratégias utilizadas, os artistas permanecem suficientemente orientados em relação às exigências do campo da arte para tentarem, dentro das suas possibilidades, viver do seu sistema de distribuição e expor a sua obra ao público. Em termos gerais, os artistas compreendem a necessidade de utilizar o sistema de mercado da arte para que a sua obra aceda às audiências, o que permite a criação de condições de visibilidade para fins comerciais, e/ou a aquisição de capital simbólico que varia de intensidade de acordo com o espaço acolhedor e com os agentes com quem trabalham.
Muitos artistas, com o intuito de obterem vantagens dos próprios princípios que regem este processo de distribuição e consagração, movem-se no circuito tendo em conta as características do sistema, porque têm consciência do efeito que este poderá ter nas suas reputações: a integração das suas obras numa rede de negociantes mais próxima de um mercado central implica a aquisição de reputação e a possibilidade de ganhar importância histórica.
A divulgação, o lançamento dos artistas e a eficácia do seu enquadramento são normalmente assegurados por compradores e vendedores, coleccionadores e galeristas, comissários e críticos que formam e dão consistência a uma rede de apoios institucionais. São estes agentes que impulsionam a intervenção mediática e que permitem
que a obra obtenha uma mais intensa velocidade de difusão de informações. Estes sistemas de distribuição, como outras actividades de corporação que compõem o campo da arte, podem ser geridos pelos próprios artistas, mas é mais comum que os intermediários especializados, mencionados acima, realizem esse trabalho de criar ordem no processo de distribuição da produção e, em simultâneo, de assegurar a acessibilidade do seu próprio negócio através da criação de relações de ordem inter-pessoal e institucional que possibilitem a criação de condições estáveis de circulação das obras.
De acordo com o estudo clássico do mercado da arte de Moulin (1967), os negociantes integram o artista na economia social «transformando os valores estéticos em valores económicos», o que implica em termos práticos a mobilização de outros agentes e instituições e a legitimação de complexas redes de circulação de capital simbólico em torno da produção artística. Ao especializarem-se num/a «consagrado/a» da arte contemporânea, os negociantes vão justificando os seus gostos numa base de critérios previamente estipulados[i].
Arnold Hauser (1973) refere que as obras ou escolas de arte do passado são interpretadas, apreciadas e desprezadas de acordo com o ponto de vista dos padrões correntes da época, o que implica que certos julgamentos pronunciados pelos historiadores de arte não se constituam como exemplos de relativismo, já que cada geração procura julgar os registos artísticos de épocas anteriores à luz das suas finalidades, ao considerá-las com interesses renovados e com novas visões. Previamente resultantes de avaliações e revalorizações, a história da arte tende a focar como objecto de estudo as obras, os artistas, os acontecimentos e as tendências artísticas que estejam de acordo com os interesses das camadas sociais mais influentes.
Os seus processos de interpretação e de avaliação tendem a reflectir o desenvolvimento das escolas e a consagrar o gosto do patrono sublinhando a sua influência na configuração do legado de produção cultural. Consequentemente, esta valorização contínua do gosto previamente estabelecido por parte da história da arte sustenta, em simultâneo, os interesses dos investidores na medida em que consolida a sua posição/status no próprio campo, relativamente aos seus pares, a outros agentes e perante os próprios públicos.
Ter a capacidade de investir em arte implica pertencer a uma classe social economicamente mais elevada e ser capaz de adquirir conhecimentos substanciais das convenções que estruturam a produção de “arte erudita”, de acordo com os parâmetros oficiais. Nesta relação com o patronato, que controla as oportunidades de exibição e que consegue expor os trabalhos que ganha à comissão, o artista não pode jamais beliscar quem o publicita ou quem o consagra: há portanto que saber jogar com os próprios limites da liberdade delimitados pelos agentes e pelas instituições. Tal como demonstrou Hans Haacke (1976, 1978), as escolhas são feitas e justificadas como exercícios nas relações públicas e na construção de imagens corporativistas que são usualmente conservadoras e feitas para produzirem um efeito positivo num grande número de pessoas.
Algumas variantes artísticas tendem a surgir ao público, no seu conjunto, como produtos que facultam o prazer e o ócio, como armas vitais que perpetuam a criação fragmentada em relação ao real e que se limitam a assinalar a lógica da extensão do poder do mercado.[ii] Os empresários de primeira linha, que comummente actuam no topo da estrutura do campo da arte, encarnam com muita frequência esse papel de utilizar a arte como suporte decorativo dos próprios edifícios e como estratégia de auto-promoção dentro do mundo empresarial.
A entrada no mercado da arte por parte de um mecenas equivale a um acesso ao status em que «Rockefellers e Guggenheims usam os seus recursos económicos e sociais para erguerem monumentos a eles próprios, em forma de grandes museus de arte contemporânea». [iii] Estas motivações de um investidor em suportar e rodear-se de arte podem ser exemplificadas a partir destas citações recolhidas por Hans Haacke:
«A minha apreciação e prazer da arte são estéticos em vez de intelectuais. Não estou mesmo preocupado com o que o artista diz; não é uma operação intelectual – é aquilo que sinto.» - Nelson Rockefeller[iv] «O apoio da EXXON serve as artes como um lubrificante social. E se o negócio continua nas grandes cidades, precisa de um ambiente lubrificante.» - Department of Public Affairs, EXXON Corporation [v] «Mas a coisa mais significante é que permite aumentar reconhecimento no mundo dos negócios, a arte não é uma coisa à parte, ela tem a ver com todos os aspectos da vida, incluindo o negócio – porque ela é, de facto, essencial para o negócio.» - Frank Stanton[vi]
Quando os investidores têm tais concepções e objectivos relativamente à arte correm o risco de entrar em frequentes conflitos com alguns artistas, já que este tipo de comentários revela o seu interesse em adquirir arte como modo de entretenimento e como prova de marca do cultivo e do gosto adequados ao status social que pretendem vincar. Por outro lado, o facto de o artista não ser independente dos condicionalismos económicos e sociais implica que, por vezes, os seus interesses, enraizados pelo desejo de poder e/ou prestígio, ou mesmo por uma necessidade básica de subsistência, também impliquem uma natureza material.
Mesmo que o artista permaneça consciente do facto de estar condicionado às condições materiais, ele não pode fugir à condição de que a sua produção cultural poderá legitimar os interesses de consagração de agentes e entidades promotoras em detrimento de uma eventual função educativa e formadora de uma sua obra que faça menção, por exemplo, a questões éticas. Dentro do mercado da arte, as pressões da competição colocam o artista numa situação de obrigatoriedade em produzir uma estética que surpreenda e que surja como novidade dentro do circuito.
Normalmente, o efeito “novidade” surge no campo da arte como uma estratégia contra a saturação do mercado; sendo que, como refere Maria de Lourdes Lima dos Santos, «a novidade torna-se numa repetição, numa moda que precisa de combinar a série com a novidade».[vii] Esta moda que se agregou ao campo da arte e que potencializa o que há de original, de inesperado e de genial é um fenómeno que surge também no domínio concorrencial da mercadoria, pela qual as mitologias propagandeadas pela publicidade se constituem como factores determinantes para a adesão ao produto e ao seu código.
O efeito “novidade” permite, por outro lado, criar especulação sobre as obras, atribuir-lhes o feitiço, como refere Baudrillard: criar «êxtase a partir do seu valor, não somente no plano económico mas também no plano estético».[viii] O artista está, portanto, socialmente condicionado a utilizar e a (re)configurar a sua criatividade e a seguir a “tradição da inovação” que simultaneamente o sustenta a si e ao mercado. Dentro da prática criativa, os artistas são levados a afirmarem-se individualmente e compreendem que não podem ser premiados se não deixarem de respeitar a nobreza de espírito e o carácter do patronato. A necessidade de total sobrevivência dentro do mercado da arte tende a conduzir o artista a produzir de modo a que o seu trabalho respeite determinados padrões morais e estéticos, tornando-se, involuntariamente ou inconscientemente, no porta-voz dos seus compradores e protectores, cuja elevada posição não pode jamais ser beliscada.
Rui Pedro Fonseca
2008
(b) Rockefeller Center, New York
Bibliografia:
CHIPP, B. Herschel. 1995. Teorías del arte contemporáneo / Fuentes artísticas y opiniones críticas. Madrid: Fuentes de Arte.
Hauser, Arnold. [s/d]. Teorias da Arte. Lisboa: Editorial Presença.
KAMINSKI, Rosane. 2002. “O potencial crítico da arte e o sujeito no espaço da globalização”. A Fonte – Revista de Arte. Curitiba. Maio 2002. In: www.fonte.ezdir.net.
MELO, Alexandre (org.). 1994. Arte e Dinheiro. Lisboa: Assírio & Alvim.
WEINTRAUB, Linda. 2003. Making Contemporary Art; How Today’s Artists Think and Work. London: Thames & Hudson
Notas:
[i] Tradução livre do autor. Cf. Moulin (1967), apud. Howard Becker, “Distributing Art Work”. (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 86.
[ii] Cf. Howard Becker, “Distributing Art Work”. (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 81-82.
[iii] Tradução livre do autor. Apud. Howard Becker, “Distributing Art Work,” (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 82.
[iv] Tradução livre do autor. Apud. Howard Becker, “Distributing Art Work,” (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 82.
[v] Tradução livre do autor. Apud. Howard Becker, “Distributing Art Work,” (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 82.
[vi] Tradução livre do autor. Apud. Howard Becker, “Distributing Art Work,” (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 82.
[vii] Maria de Lourdes Lima dos Santos, “Cultura, Aura e Mercado”, (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 131-132.
[viii] Tradução livre do autor. Jean Baudrillard, “De la Marchandise Absolue”, (in: Arte e Dinheiro, Org. Alexandre Melo, 1994.), 36. |